Eu estava conversando com o Carlo Carrenho havia alguns minutos quando ele disse, todo sem graça, “Desculpe, mas quem é você mesmo?”. Assim começou meu segundo dia em Frankfurt, encontrando por acaso o fundador do PublishNews no estande do Brasil. Pensei em responder “Sou o Schwarcz, da Companhia. Prazer!”, mas me contive. Estávamos numa conversa animada, falando sobre as tendências do mercado, discutindo as apostas das editoras estrangeiras, que trouxeram livros sobre bruxas e de RPG para a feira de Frankfurt. Será esta a nova tendência, depois dos vampiros românticos, dos cinquenta tons, do diário de um banana? Carlo comentou que, no trabalho que agora desenvolve, não lhe interessa tanto o que as pessoas vão ler, mas como vão ler. Sua preocupação, atuando no mercado global de áudio, está no modo como os leitores irão se relacionar com as plataformas.
Ele precisava ir até o pavilhão 6 e eu me dispus a acompanhá-lo, para ganhar mais alguns minutos de conversa. Sim, ganhar, pois sempre podemos conseguir uma dica preciosa, ouvir um bom conselho, ou ter uma boa ideia quando conversamos com alguém que tem uma visão tão completa do mercado.
Avançando pelos corredores de carpete vermelho de Frankfurt, confessei que estava me sentindo confuso; tantas reuniões, tantos estandes, tantas oportunidades. Carlo me contou que a feira já foi muito maior, com o dobro do tamanho. Ainda por conta da pandemia, muitos editores asiáticos não compareceram, desanimados por terem de cumprir uma quarentena obrigatória quando retornassem aos seus países. Me disse que há duas Frankfurts, “ou três, ou quatro”, referindo-se não a Frankfurt da feira, dos estandes, dos matchmakings, mas dos encontros com o pessoal da indústria do livro. Logo antes havia encontrado um dos diretores da Planeta, amigo antigo, e trocara algumas palavras com um dos organizadores. “Não se trata de comprar ou vender este ou aquele livro, mas de estar no mercado.”
Nos despedimos e segui com minhas reuniões. Matchmaking com editores argentinos e de Taiwan, encontro com a Silvia Vassena, no estande da Itália, reunião com a Irum Fawad Siddiqui, no estande de Abu Dhabi. No fim da tarde, os editores do Egito organizaram um coquetel, bebidas não alcoólicas, uns doces de pistache com mel, fios de nozes aqui e ali. Falaram do Cairo Calling, o programa para visitar o país, em janeiro. Lá conheci o editor do Publisher Weekly, Ed Nawotka, e encontrei o Sherif e a Ranya Bakr, amigos desde Sharjah.
Sherif e Ranya são irmãos e os editores à frente da Al Arabi, editora egípcia que publica ninguém menos que o Gabriel García Márquez. O pai de ambos fundou a editora há quase 50 anos, e eles cuidam do negócio desde 2010. Depois do coquetel, sentamos para negociar, e acertamos um pré-contrato. Detalhes depois, por e-mail, mas decidimos os autores e títulos. Combinamos também de jantar, um restaurante italiano, outros 12 editores convidados. Era a oportunidade de estar na outra Frankfurt, a qual o Carlo Carrenho havia se referido mais cedo.
Cheguei atrasado, para manter a tradição. Sentei bem ao lado do Sherif, e me enturmei com duas agentes francesas, que aproveitaram o intervalo entre o antipasto e o primo piatto para perguntar quantos livros eu publico por ano, quantas traduções, e que gênero estou buscando. Bom vendedor não perde a oportunidade! Criticamos juntos os autores estrangeiros que ficam reclamando da capa, os agentes que inflam o preço de livros que no fim não vendem bem, os autores que têm preguiça de promover o próprio livro. Papo de editores. Também comentamos sobre as vacinas, o susto que o mercado tomou no início da pandemia, o Nobel de literatura, que alguns acreditavam que seria entregue ao Salman Rushdie. Eu também, vale dizer.
Neste momento, Sherif assumiu a conversa para contar sua experiência ao receber um importante prêmio internacional. Em setembro, a Al Arabi foi laureada com o King Abdullah Ibn Abdul Aziz Internacional Award for Translation, o mais importante e prestigioso prêmio para editoras do mundo árabe. O prêmio lançou Sherif e Ranya numa série de entrevistas e eventos. Trata-se da primeira editora independente a receber a honraria. A cerimônia de premiação foi organizada na Universidade do Cairo, e Sherif preparou um discurso. Começou dizendo que se formara há 25 anos naquela mesma universidade, e que, na época, nunca imaginou que estaria de volta, recebendo a homenagem. Continuou agradecendo seu pai e sua mãe, falecidos, sua irmã, família, amigos, e neste momento se emocionou, a voz embargou. Era a hora de agradecer ao prêmio, à comissão julgadora, mas ele não se lembrava o nome exato do prêmio, e nem sabia onde tinha enfiado o papelzinho no qual havia anotado! Emocionado, esqueceu o que estava ganhando, e ficou preocupado de errar, afinal, pronunciar um nome incorreto, da família errada, poderia ser uma ofensa grave. Terminou dizendo um genérico “obrigado pelo prêmio”, e saiu apressado do palco.
A mesa toda riu e o garçom trouxe um limoncello, verde e denso, servido num copinho largo. Era hora do digestivo. Aproveitei para contar de quando troquei cinco e-mails com o fellowship de Doha, certo de que estava conversando com a associação de editores do Catar, estranhando eles me recomendarem, ao final de cada mensagem, procurar uma igreja e rezar. Na verdade, era uma associação cristã, sem qualquer relação com o mercado de livros.
Acho que o Carlo Carinho tem razão: existem duas Frankfurt, e a dos encontros é muito melhor.
